Quero oferecer-te um dia puro. Um dia em que os dois possamos
abrir os olhos e olhar para o outro com os nossos sentimentos acabados de
nascer. Sem mácula, sem receios, só os nossos olhos suspensos um no outro e sem
o passado que frustrámos, o futuro que desconhecemos. O momento da criação,
repetido no teu dia puro.
Antes de nos termos magoado. Antes de nos termos mentido. Antes
de termos desviado os olhos pela primeira vez, por não aguentarmos a verdade nos
olhos do outro. Os dois, de cabeça erguida, no momento primeiro de nós, os
outros excluídos, as ausências de fora, o telefone que não tocou esquecido,
todas as palavras que dissemos a mais, todos os silêncios com que nos agredimos,
de fora.
Quero oferecer-te um dia puro. Sem a primeira vez em que
gritámos palavras de ódio, sem a primeira vez em que calámos palavras de amor.
Todas as dores, todas as nódoas negras, todas as marcas, as cicatrizes fora do
nosso dia puro. Sem as rugas que marcam a pele, sem o peso do mal que nos
fizemos. Tudo jovem, fresco, novo e cheio de potência.
Eis o teu dia puro, o momento da criação. O momento em que
dentro de nós tudo se encolheu e expandiu por reconhecer o outro. O momento que
a minha pele e a tua deixaram de conhecer fronteiras e o território comum que
era nosso foi marcado apenas pelo espaço dos outros. O momento em que não precisámos de palavras, de
justificações, de desculpas. Confiança no que nascia, na força do que crescia,
sem espaço para dúvidas nem para inseguranças – é esse o momento a que volto
para te criar um dia puro.
E talvez ele não seja real. Talvez nunca mais tenhamos um dia
puro. Porque não seríamos tu e eu e o que vivemos e destruímos e criámos, já não
puro, já consertado, mas ainda assim cheio da vitalidade do que se transforma.
Podemos viver o dia puro que te quero oferecer, mas sabemos que é uma criação,
porque esse dia nunca mais. Nós não somos os mesmos e deixar o que fizemos de
fora do nosso dia puro é tentar a pureza aos pedaços.